domingo, 20 de fevereiro de 2011

A inauguração do circo raro- Celly Borges

“Atenção, senhoras, senhores e crianças! Chegou o circo mais espetacular jamais visto! Faremos nossa apresentação de estreia nesta cidade. Animais adestrados, nunca antes vistos em um circo. A primeira sessão será inteiramente grátis!”

Anunciava o carro de som precário que passava por todas as ruas dos bairros próximos. O motorista aproveitava para jogar pela janela panfletos. As crianças corriam e pegavam vários, as que não sabiam ler, rapidamente procuravam um adulto próximo que lhes contasse o que dizia nos papéis.



A pequena Mary entregou o papel a João, seu pai, que leu:

Chegou o incrível Circo Raro! A inauguração será sábado, dia 14, às 21h.
Venham todos, e vejam a mais incrível das criaturas já adestradas!
Será uma surpresa incrível, não tenha dúvida!
Retire seu ingresso na bilheteria do circo, no endereço R...
Obs.: todos os grandes nomes da cidade estarão presentes!


Na sexta-feira todos estavam ansiosos, mas o sábado não tardou a começar. E, como era um espetáculo gratuito, a fila teve início cedo.

Entre as rodas de pessoas que esperavam a hora de receber o ticket, várias resolveram apostar que animais interessantes seriam aqueles. Alguns arriscavam em ornitorrincos, enquanto outros concordavam, sem mesmo saber o que seria um, ou como seria.

Todos acomodados, o espetáculo teve início, exatamente às 21h. No centro do palco, uma jaula coberta por um tecido escuro. O que quer que estivesse lá dentro, fazia muito barulho ao se jogar contra as grades.

(Ah, como se eu não soubesse o que era.)

O apresentador chegou. Uma luz somente nele. Apenas quem estava muito próximo pôde perceber aqueles olhos. Olhos negros, tão escuros quanto a própria noite sem estrelas nem lua. Tão escuros quanto um ser desprezível, sem alma. Mas aquele homem tinha alma, e não era desprezível, a meu ver.

A plateia ainda estava lá, sem saber o que a aguardava. Enfim, vamos lá, o espetáculo deve ter seu ciclo eterno um dia iniciado. E a oportunidade chegou.

Corro para frente do palco, pois Lorde John me chama. Agora é a minha vez de ver mais de perto aqueles olhos vidrados numa atração nova. Os olhos de Lorde John estão extasiados, vidrados naquela nova atração a sua frente. O público.

Nunca disse ao contrário, mas tenho de reafirmar aqui: Lorde John é louco! Todos nós sabemos. Bem, “nós”, somos seus seguidores. E, por isso, também loucos.

Chegou a hora, Lorde John pede para que eu, sua assistente, retire o pano que recobre a jaula, aliás, uma jaula não muito grande! Apenas para que caibam todos os nossos pequenos bichinhos treinados. Deleite-se, público.

O pano cai, o rosto das pessoas em uma fisionomia chocada. Minha risada pode ser ouvida por todos os cantos, Lorde John olha para mim e sorri encantador, insano. Meu ser preferido neste e em outros mundos.

Dentro da jaula, vários seres, iguais àqueles na arquibancada, seres repulsivos, humanos, que maltratam os animais que não podem se defender. Mas, oh, nós, do Circo Raro, pagamos bem, damos comida, aos seres humanos – claro que sempre esquecemos que precisam se alimentar, mas e daí??? Não é assim também que funciona com os animais? Oh, como pude esquecer? Afinal, eles também são animais, racionais, como se definem, não? Agora eles são parte do Circo de Horrores!

Olhe lá, os seres humanos correndo da própria raça. Eles estão presos, como todos deveriam estar, são maltratados, como todos deveriam ser... São hipócritas como todos são.

Lorde John está ali, ao meu lado, segurando minha mão, e olha com prazer àquela cena, mas eu sabia que, por dentro, estava triste, pois não conseguimos apresentar os truques que ensinamos aos nossos bichinhos.

Quem sabe da próxima vez.

Medo B

2 comentários:

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